“Tudo esperava por mim…”

Ana Chaves
5 min readAug 4, 2021

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Me chama atenção a forma que Patti Smith inicia o capítulo “Filhos da segunda-feira”, do livro Só Garotos (2010) pela Companhia das Letras, ela faz menção à dois eventos simbólicos para ela: seu nascimento em Chicago e seu renascimento em New York. Aliás, como não se perceber envolvida pelos apegos simbólicos da autora?! Na primeira página do capítulo, Patti traz um pequeno relato de uma experiência e nele nos antecipa muito do livro ao dizer:

A palavra por si mal dava conta de sua magnificência, nem continha a emoção que ele (o cisne) produzia. Sua visão gerou uma necessidade para a qual eu não tinha palavras, um desejo de falar.

Esse recorte nos traz algo de valioso para toda a produção da artista, uma vez que desde muito nova ela demonstra perceber o furo na escrita, no desenho, na música, na arte. Esses artifícios nunca iriam dar conta da existência em si, mas isso não os faz indispensáveis, muito pelo contrário, reside aí, no furo, os seus valores, aquilo que a desloca, que a move e que a fez, por exemplo, ir de encontro ao desconhecido. Sendo esse desconhecido uma cidade outra, um amor incerto, uma carreira sem muitas garantias…a simples (ou não) existência conforme coube a ela.

A autora segue se apresentando e expondo suas inquietações, curiosidades e apreço pela escuta e pelos livros, esse último se faz presente, desde muito nova, no colo de sua mãe. “Eu queria saber o que havia ali, o que capturava sua atenção tão profundamente”, diz Patti em relação a dedicação que sua mãe investia nesse objeto misterioso. “Deslumbrada e rebelde” como ela mesma se intitula, Patti encontrava consolo nos livros, era a partir deles que ela calcava suas visões e escrevia suas próprias histórias e contos.

Em uma ida ao Museu, Patti diz ter sido “transformada, comovida pela revelação de que os seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver.” Ela relata não ter nenhuma prova de que possuía tal vocação, mas ansiava por ser tornar uma. Quando moça, cerca de uns 20 anos, Patti diz que arrumou um problema, ficou grávida. “Não me escapou a ironia de que eu, que nunca desejara ser garota nem crescer, precisasse encarar essa prova. Fui humilhada pela natureza” destaca ela. Isso foi o suficiente para que ela não voltasse ao trabalho que possuía e a faculdade que cursava. Decidira ser artista.

Com o dinheiro da passagem de ida e o apoio de sua mãe, Patti embarcou no ônibus rumo à Nova York. A cidade era uma cidade de fato, cambiante e sexual. Ela esperava que uns amigos a pudessem acolher em um endereço que ela tinha, mas eles tinham se mudado dali, ao invés de encontrá-los, deu de cara com aquele que viria ser seu grande amor, “encontro casual que alterou o rumo da minha vida”. Sem muita motivação ou condição para permanecer ali, ela segue vagando, exausta e faminta.

E é com essa série de eventos que iniciamos o capítulo “Só Garotos”. Logo de inicio, Patti expõe que “o romantismo não conseguia saciar a sua necessidade de comida”. É bem palpável seu relato acerca da experiência nas ruas, mas ela precisava e conseguira um emprego, esse que garantiria o seu segundo encontro com o “menino que tinha encontrado rapidamente no Brooklyn”. O segundo encontro foi sucedido de um terceiro, inusitado e que firmaria um vínculo, ali, eles “haviam aberto mão da solidão, substituindo-a pela confiança mútua”. Existiu uma identificação imediata, ao mesmo tempo em que muito se dizia, havia também espaço para o não dito.

E não só, a escritora se utiliza de palavras como lugar seguro, paciência e companhia para se referir aquela experiência.

“Misturamos nossos pertences. Meus poucos discos foram colocados no engradado de laranjas com os dele. Meu casaco de inverno, pendurei ao lado do colete de ovelha dele. (…) suas músicas viraram nossas músicas, a expressão de nosso amor jovem. (…) Não tínhamos muito dinheiro, mas éramos felizes”.

Tratando um pouco mais de Robert, a autora nos revela algumas características de seus trabalhos, marcados pela experiência com LSD, Robert traz signos do catolicismo, partindo dos mais puros até os mais profanos, sua ambição descrita por Patti dava sentido a obsessão evidente em suas produções.

Assim como a religião deixa marcas simbólicas no casal, aos seus modos, a política também contribui de forma categórica, em meio às crises de sua constituição enquanto artista crítica e comprometida, Patti expõe a sua não identificação política com os movimentos e suas burocracias. Em contrapartida, Robert parecia nunca questionar seus impulsos artísticos. Cabe lembrar que isso é um relato da Patti sobre Robert e não de Robert, mas supondo que isso seja legítimo, faz muito sentido ele ser tomado por uma crise artística muito paralisante mais a frente, enquanto Patti vivia de pequenas doses de instabilidade impulsionadoras, Robert, ao não ceder espaço as suas próprias, acabou por ser tomado diversas vezes por elas.

Fazendo jus ao caráter supersticioso ao qual ela se identificava, a artista percebera prenúncios do que ela chama de acirramento ou inquietação dos dias do casal. O atentado contra Andy Warhol por Valerie Solanas e a morte de Kennedy anteciparam os conflitos entre Patti e Robert. Saliento o trecho:

“Eu reconhecia seu mundo ao mesmo tempo em que ela entrava de bom grado no meu. Às vezes, no entanto, ficava aturdida e até irritada com uma transformação súbita. Quando ele cobriu as paredes o os medalhões do teto do quarto com celofane, eu me senti excluída, porque parecia mais algo para ele do que para mim”.

Evidentemente, ambos possuíam limites de intimidade aos quais o outro não conseguiria acessar, e essa intimidade quando se sobrepunha ao do outro, de modo a não considerar mais esse outro, obviamente ocasionaria, como ocasionou problemas. “Eu não sentia mais se tratar do nosso mundo, mas do mundo dele”. Essa distância estabelecida entre os dois gerou mudanças distintas em cada um, Robert cada vez mais introspectivo e possessivo, enquanto Patti desejava ocupar outros espaços, considerando que seu lar havia sido tomado.

“Eu ainda não havia compreendido que o comportamento conflituoso de Robert estava associado à sua sexualidade. Sabia que ele gostava profundamente de mim, mas me ocorreu que havia se cansado de mim fisicamente. Em certos aspectos, senti-me traída, mas na verdade fui eu quem traiu. Fui embora de nossa casinha na Hall Street. Robert ficou arrasado, embora ainda não conseguisse explicar o silencio que nos envolveu”.

Nesse contexto, Patti pôde virar sua própria protagonista, ainda que vendo Robert, sua arte durante esse período se baseava muito mais nela, sua produção de autorretratos serve de exemplo. Em um dos seus pedidos de retorno à Patti, Robert a ameaça ficar com um cara, virar homossexual caso ela não o acompanhasse à São Francisco. Ela não demonstra compaixão, logo ele a deixa um envelope, uma espécie de manifesto como artista. Ambos seguem seus caminhos de autodescoberta, Patti experimentando outras manifestações artísticas como pintura a óleo e Robert explorando outros aspectos sexuais possíveis.

O texto acima faz parte do roteiro do primeiro encontro do Clube do Livro: Literatura e … coordenado por mim e Ariele Moura no mês de julho de 2021.

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Ana Chaves

Em percurso psicanalítico e acadêmica de psicologia