Estátuas de sal

Ana Chaves
2 min readMay 15, 2021

--

Em um trecho do romance “O amigo”, Sigrid Nunez, autora da publicação, trás algumas contribuições para que possamos analisar a experiência imersiva que é assistir The Haunting of Hill House (2018):

Um tema significativo na obra de Christa Wolf é o medo de que escrever sobre alguém seja uma forma de matar essa pessoa. Transformar a vida de alguém em uma história é como tornar a pessoa uma estátua de sal. Em um romance autobiográfico, descreve um sonho infantil recorrente no qual ela mata a mãe e o pai ao escrever sobre eles.

Exponho essa ideia com o intuito de ponderarmos o contexto da série americana antológica, dirigida e criada por Mike Flanagan. A produção nos conta a história da família Crain, Hugh (Timothy Hutton) e Olivia (Carla Gugino) mudam-se temporariamente para uma mansão com seus cinco filhos: Steven (Paxton Singleton/Michiel Huisman), Shirley (Lulu Wilson/Elizabeth Reaser), Theodora (Mckenna Grace/Kate Siegel), Luke (Julian Hilliard/Oliver Jackson-Cohen) e Eleanor (Violet McGraw/Victoria Pedretti).

Em decorrência de eventos inesperados seguidos de uma tragédia (pouco explicada, à princípio), a família decide ir embora da casa e reconstruir sua vida em um outro lugar. Após duas décadas e meia, os mesmos se percebem obrigados a se haverem com os fantasmas do passado. Destaco aqui a trajetória de um dos filhos do casal: Steven.

Steven, o filho mais velho dos Crain, encontrou outra via possível para suas marcas da infância na escrita, tornando-se, assim, um reconhecido escritor de terror. Reconhecimento esse que se deu através da sua autobiografia: A Maldição da Residência Hill, uma obra que ocasiona uma ruptura entre ele e sua irmã, Shirley. O incômodo advindo da ruptura e da então exposição de um período da história da família, se apresenta em inúmeros episódios ao longo da série, e Shirley parece ser a única a reconhecer o lugar ao qual o irmão e a família atribuíram para eles mesmos nesse movimento.

O curioso é que, apesar da escrita se colocar como uma outra via, Steven se recusa a deixar que isso de fantástico no terror, por exemplo, venha à tona em sua vida real, sempre se mostrando cético e em negação frente a eventos que fogem de uma razão “natural”. Para além da relação dos dois, a produção nos leva a perceber o engessamento dos lugares atribuídos a todos esses sujeitos por suas figuras materna e paterna, desde antes da tragédia, e como isso custa caro aos personagens em suas vidas adultas.

A forma como as histórias dos membros dessa família se cruzam ao longo da narrativa, nos mantém atentos e por vezes, a espera de uma possível compreensão do todo, mas no final o que se pode perceber é a ausência de reconhecimento das partes. Partes que quando só puderam ser lidas como inteiras, se mostravam como estátuas de sal, mortas, condenadas ao desejo do outro.

--

--

Ana Chaves

Em percurso psicanalítico e acadêmica de psicologia